Como comer mais gordura pode melhorar a tua memória

Este é um artigo traduzido por Sandra Oliveira. O original, escrito pela nutricionista Maria Cross, está aqui.

A dieta cetogénica é muito mais do que perda de peso.

O teu cérebro é o centro nervoso mais sofisticado e avançado do planeta. Ou – dependendo de como olhas para ele – um pedaço de gordura enrugado, alojado dentro do teu crânio. De qualquer maneira, é a acumulação de milhões de anos de biologia evolutiva humana.

Nenhum outro órgão contém tanta gordura ou precisa tanto dela. Sem ela, o cérebro simplesmente não consegue funcionar. A perda de memória é um sinal disso.

O peso seco do cérebro é 60% de gordura. Está tudo lá: gordura saturada, monoinsaturada e polinsaturada. Há também uma boa dose de colesterol, uma substância semelhante à gordura. Além de formar parte da estrutura do cérebro e fornecer energia, essas gorduras desempenham um papel na manutenção da memória e de outros aspetos da função cognitiva.

Da mesma forma, a falta das gorduras certas desempenha um papel na disfunção cognitiva, incluindo falta de memória e, no limite, demência.

Talvez seja por isso que a gordura seja tão atraente. “A gordura dá sabor aos alimentos”, tal como a famosa chef e personalidade da TV Julia Child disse uma vez. A gordura é saciante e ilumina instantaneamente os centros de recompensa do teu cérebro.

O cérebro não funciona com glicose, e não com gordura?

Sim e não, é a resposta a esta pergunta.

Embora o cérebro humano normalmente use glicose como sua principal fonte de energia, pode mudar para a queima de substâncias chamadas cetonas, quando a glicose é escassa. As alturas de escassez incluem jejum, exercícios de resistência e quando estás numa dieta baixa em hidratos de carbono. Os hidratos de carbono são a principal fonte de glicose do corpo.

Quando os níveis de glicose diminuem, os ácidos gordos são libertados do tecido adiposo – a tua gordura armazenada. As cetonas são produzidas no fígado a partir desses ácidos gordos.

Os ácidos gordos não podem atravessar o cérebro através da barreira hematoencefálica, mas as cetonas podem, e fazem-no.

É uma coisa cetogénica

Podes ter ouvido falar da dieta cetogénica como uma estratégia de perda de peso. É, basicamente, uma dieta muito baixa em hidratos de carbono, rica em gorduras e é eficaz porque, quando a glicose acaba, começas a entrar na gordura armazenada.

A dieta cetogénica é a mais recente de uma longa linha de dietas populares. Mas não te enganes – esta não é uma dieta nova ou da moda. A perda de peso é apenas um bónus adicional; não é aquilo a que de a dieta originalmente se tratava.

A dieta cetogénica é um tratamento cientificamente comprovado para a epilepsia resistente a medicamentos. Foi usada pela primeira vez na década de 1920, quando se descobriu que era uma maneira eficaz de controlar as convulsões.

Estudos descobriram que metade das crianças experimenta pelo menos 50% de redução nas convulsões após 6 meses de dieta cetogénica e um terço atinge mais de 90% de redução.

“A dieta cetogénica (KD) agora é uma terapia comprovada para epilepsia resistente a medicamentos, apoiando seu uso em vários estados de doenças neurológicas.”

Agora, o foco está na memória e na função cerebral.

A epilepsia é um distúrbio cerebral – aí está a tua primeira pista.

A tua segunda pista é o fato de que há uma maior incidência de convulsões em pacientes com doença de Alzheimer do que em pessoas sem a doença.

Os investigadores estão otimistas de que a dieta cetogénica possa ser usada como uma estratégia eficaz de prevenção da demência. Uma dieta pobre em hidratos de carbono já se mostrou eficaz no tratamento de transtorno cognitivo leve (TCL), uma condição que precede a demência e é considerada um fator de risco para a doença.

Em 2012, a revista Neurobiology of Aging publicou os resultados de um estudo sobre os efeitos de uma dieta muito baixa em hidratos de carbono na perda de memória. Os 23 participantes, idosos e todos com TCL, receberam uma dieta muito alta ou muito baixa em hidratos de carbono por seis semanas. No final do período experimental, foi observado um melhor desempenho da memória verbal no grupo de baixos hidratos de carbono, mas não naqueles que seguiam a dieta rica em hidratos de carbono. O grupo de baixos hidratos de carbono, cetogénico, também sofreu reduções no peso e na circunferência da cintura.

“Essas descobertas indicam que o consumo muito baixo de hidratos de carbono, mesmo a curto prazo, pode melhorar a função da memória em idosos com risco aumentado para a doença de Alzheimer”.

Como funciona?

Pessoas com Alzheimer têm a captação de glicose no cérebro comprometida – o uso de glicose pelo cérebro deteriora-se.

É por isso que a diabetes tipo 2 aumenta o risco de demência. Os diabéticos não produzem insulina suficiente ou não podem usá-la adequadamente. Uma dieta cetogénica contorna esse problema – as cetonas fornecem uma importante fonte de energia que não a glicose ao cérebro. O fígado pode produzir cetonas suficientes, por dia, para atender às necessidades do cérebro.

A cetose ocorre quando o corpo está a produzir cetonas. A cetose pode ser induzida num regime alimentar de 20 g a 50 g de hidratos de carbono por dia. Esse regime produz uma mudança do metabolismo da glicose para o de cetonas e é indicado pela presença de cetonas na urina.

Ceto côco

Há outra maneira de queimar cetonas como energia, além de restringir hidratos de carbono.

Alguns ácidos gordos saturados – os triglicerídeos de cadeia média (MCTs) – são facilmente metabolizados pelo organismo e convertidos em cetonas. Por esse motivo, os cientistas acreditam que esses MCTs podem ser benéficos para pessoas com Alzheimer ou algum tipo de declínio da memória. Se não podem usar glicose, podem usar MCTs em alternativa.

O côco é uma fonte especialmente rica de MCTs. De facto, foi apontado como um “potencial fortalecedor cognitivo” para pessoas com Alzheimer.

Quando um grupo de 20 pessoas com Alzheimer ou transtorno cognitivo leve recebeu uma dose oral de MCTs, ou um placebo,

“Valores mais altos de cetonas foram associados a uma maior melhoria na recordação de parágrafos com o tratamento MCT em relação ao placebo em todos os indivíduos”.

Mas, a cetose é natural? Ou mesmo segura?

Fizeste isso no útero; simplesmente não te lembras.

Os bebés usam cetonas como combustível cerebral, antes mesmo de nascerem. As cetonas fornecem até 30% da necessidade de energia do cérebro, antes do nascimento.

Após o nascimento, os bebés que são amamentados estão num estado cetogénico suave e sustentado, porque o leite materno contém ácidos gordos de cadeia média – assim como o coco.

Também não te faz mal quando és adulto. Em 2003, uma revisão sistemática não encontrou efeitos adversos de uma dieta cetogénica nas gorduras sanguíneas, pressão arterial ou níveis de glicemia em jejum. Em vez disso, os ensaios resultaram na melhoria da saúde e perda significativa de peso.

A cetose nutricional pode ser alcançada com segurança por uma dieta cetogénica rica em gordura

Não há nada de novo numa dieta rica em gorduras. Nós, humanos, desenvolvemos um gosto por gordura há cerca de 3 milhões de anos, quando começámos a deixar as nossas casas nas árvores e abandonamos a nossa dieta à base de frutas. Esta é a tua terceira pista.

Começámos com cérebros pequenos e não éramos especialmente brilhantes. Mas a mudança é inevitável, e mudança nós fizemos.

Primeiro, nós coletámos. Então, quando ficamos mais espertos, juntámos as nossas ferramentas e fomos caçar. Quanto maior e mais gorda a presa, melhor, no que diz respeito aos primeiros humanos.

É claro que não sabíamos disso na época, mas a mudança no estilo de vida, de comer frutas a caçadores-coletores, é creditada por desencadear a mais rápida e extraordinária expansão do cérebro, pela qual nós, humanos, somos tão famosos. O cérebro passou a quase triplicar de tamanho – um feito excecional em qualquer padrão.

Mark Sisson, ex-atleta americano de resistência e agora autor de best-sellers de nutrição e de um blog, resume a dieta cetogénica como “Um reset… um retorno ao estado metabólico ancestral, o estado metabólico em que nascemos”. Eu acho que isto o resume muito bem.

Além das cetonas: DHA

As cetonas não são a única gordura que o cérebro gosta e precisa. As cetonas fornecem energia, mas no que respeita à função, existem outras gorduras. Talvez a mais importante delas seja o ácido gordo ómega-3, ácido docosa-hexaenóico (DHA).

Apenas duas espécies de mamíferos têm cérebros desproporcionalmente grandes e cognição avançada – os humanos e o golfinho Roaz-Corvineiro ou Golfinho-Nariz-de-Garrafa. Ambos dependem do DHA.

Precisas de DHA para a função neurotransmissora e para o desenvolvimento das tuas habilidades cognitivas. Os neurónios simplesmente não disparam sem ele, e a recuperação da memória será uma luta.

De facto, sem o DHA, nem sequer conseguirias desenvolver um cérebro.

Gordura do bebé

A dependência do DHA começa antes de nasceres e não termina até morreres. Durante a gravidez, uma mãe passa mais DHA para o bebé do que guarda para si mesma. Este fornecimento é normalmente suficiente para os três primeiros meses de vida.

Depois disso, tudo depende da dieta. E essa é a preocupação: as crianças que têm falta de DHA têm maior probabilidade de ter taxas aumentadas de distúrbios neurológicos, incluindo transtorno do déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) e autismo.

Jovens e idosos

A deficiência de DHA pode afetar a memória, mesmo em adultos jovens. Uma equipa de investigadores pesquisou se o DHA suplementar poderia melhorar o desempenho cognitivo em jovens que comiam pouco peixe. O peixe é a principal fonte de DHA.

No seu estudo, relatado no The American Journal of Clinical Nutrition em 2013, um total de 176 adultos saudáveis com idades entre 18 e 45 anos e com baixa ingestão de DHA receberam um suplemento diário de DHA ou um placebo por seis meses. No final do período do estudo, foram testados quanto ao desempenho cognitivo. Os investigadores concluíram que:

“A suplementação com DHA melhorou a memória e o TR (tempo de reação) da memória em adultos jovens e saudáveis cujas dietas habituais eram baixas em DHA”.

O problema não é que tomar suplementos de DHA melhora a memória – é que a falta de DHA piora a memória. Isso pode levar a problemas mais sérios mais tarde na vida.

Na velhice, a deficiência pode levar à demência. Isso ocorre porque o DHA se acumula em áreas do cérebro envolvidas na memória e na atenção, como o córtex cerebral e o hipocampo.

A má notícia é que, apesar de estudos demonstrarem que a alta ingestão de DHA tem um claro efeito protetor contra o risco de desenvolver a doença de Alzheimer, a suplementação com DHA assim que a doença ocorre parece não ter nenhum benefício.

A única fonte boa e confiável de DHA são mariscos e peixes gordurosos. Peixes gordurosos inclui salmão, truta, arenque, sardinha, atum fresco e anchovas. A carne e os ovos dão uma pequena contribuição, mas apenas de animais alimentados a pasto.

Embora alguns alimentos vegetais, principalmente nozes e sementes, contenham gorduras que podem ser convertidas em DHA, a taxa de conversão é tão baixa que é considerada insignificante e insuficiente para atender aos requisitos do cérebro.

Portanto, se não tens comido muito peixe e marisco, ou carne de ar livre, alimentada a pasto, qual é a tua fonte de DHA? Não te quero assustar, mas talvez seja bom ficar um pouco assustado às vezes.

Vale a pena garantir que tens um fornecimento abundante de DHA agora, porque

“No geral, a maioria dos estudos indica que o consumo de peixe está associado a um menor risco de desenvolver doença de Alzheimer na maioria das coortes”.

Está tudo terrivelmente errado

Não há cura para a demência, incluindo a doença de Alzheimer, a forma mais comum. Os casos estão a aumentar exponencialmente: a morte por demência aumentou quase 40% entre 2005 e 2015.

Estima-se que o número de pessoas em todo o mundo a viver com demência seja de 46,8 milhões, com previsão de duplicação em 2030. Além disso, os casos de diagnóstico precoce – com menos de 65 anos – também estão a aumentar.

Estas estatísticas não têm nada a ver com genética ou com viver mais tempo.

As evidências sugerem que o aumento alarmante nos números de demência tem tudo a ver com dieta e alguns conselhos dietéticos decididamente desonestos.

Tudo começou na década de 1950, quando o biólogo e patologista americano Ancel Keys propôs uma teoria de que a gordura saturada era a causa de doenças cardíacas. Em 1952, ele apresentou a sua “hipótese da dieta do coração”. Culpou a gordura saturada (e o colesterol) por quase todas as doenças crónicas conhecidas pela humanidade e promoveu os óleos vegetais como uma alternativa saudável.

Em 1961, Keys, agora no comité de nutrição da American Heart Association, convenceu os outros membros do comité de que a sua teoria da saúde da dieta e do coração fornecia o caminho a seguir para o bem da nação. A partir de 1961, a AHA recomendou que a gordura saturada fosse substituída por óleos vegetais feitos de milho ou soja.

Observa qualquer produto de fast food, snack ou refeição pronta e provavelmente verás a presença desses óleos vegetais no rótulo.

Esses óleos são altamente processados e ricos em ácidos gordos ómega-6. O consumo desses ácidos gordos ómega-6 disparou rapidamente, uma vez que substituíram a gordura saturada na nossa dieta.

E aí está o problema.

Substituíram a gordura saturada na dieta e deslocaram o DHA no cérebro. É geralmente aceite que evoluímos numa dieta contendo quantidades mais ou menos iguais de ambos os grupos. Eles competem pela absorção e, quando o ómega-6 excede o ómega-3, o DHA é deitado abaixo.

Se tens medo de gordura saturada, não tenhas. A evidência contra a gordura saturada sempre foi mais especulativa do que factual. É por isso que o British Medical Journal publicou, em 2015, uma revisão dos estudos mais robustos sobre os efeitos nocivos assumidos da gordura saturada – incluindo risco de morte – e concluiu que não havia evidências para apoiar as alegações de que a gordura saturada era de alguma forma um factor de risco.

Como Julia Child também disse: “Se tens medo de manteiga, usa natas”.

Os humanos são os únicos mamíferos terrestres que nascem gordos. Isto torna-nos bastante especiais. (Os golfinhos, como nós, nascem gordos e também são muito inteligentes.) A gordura existe para servir como um reservatório de energia e crescimento para o cérebro em rápido desenvolvimento.

(O papel do colesterol, uma substância semelhante à gordura, também é importante)

Pode ter tido uma má reputação nos últimos 50 anos, mas a gordura ainda é essencial para o funcionamento saudável do cérebro. Podes alterar as diretrizes alimentares quantas vezes quiseres, mas não podes alterar a bioquímica humana.

Enquanto isso, lembra-te de que tens um magnífico exemplar de biologia evolutiva alojado dentro do teu crânio. Por favor, cuida dele e reconsidera a opção sem gordura.

NOTA: se queres saber mais sobre Alzheimer, podes ler este artigo. Se quiseres saber mais sobre alimentação saudável, vê aqui.

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This Post Has One Comment

  1. ExoRank

    Awesome post! Keep up the great work! 🙂

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Como comer mais gordura pode melhorar a tua memória